terça-feira, 7 de junho de 2011

Os “Papéis Avulsos” de Machado de Assis e os sinais da desumanização na formação dos médicos veterinários.

Este texto  foi originalmente publicado e apresentado no V Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, evento que ocorreu em abril de 2011, em São Paulo. É  de autoria da estudante Caroline Coenga, discente da Medicina Veterinária da UFRPE, juntamente com a professora Rozélia Bezerra.

Os “Papéis Avulsos” de Machado de Assis e os sinais da desumanização na formação dos médicos veterinários.

Caroline Coenga e Rozélia Bezerra

Escrevo este trabalho em tom confessional porque sinto necessidade de fazer minha narrativa sobre a formação desumanizadora que o ensino da Medicina Veterinária oferece a seus graduandos e de como as humanidades constituíram um meio para refletir sobre este fenômeno.
Como representante nacional dos estudantes do curso de Medicina Veterinária, tenho participado de seminários e encontros que debatem esta formação. As proposições curriculares trazem fragmentos de um discurso liberal “o sistema educacional deve ser tão eficiente quanto qualquer empresa econômica”. Ou pretendem copiar “precisamos construir no Brasil as vertentes dominantes da educação estadunidense”. Ou então enveredam pelos caminhos das “habilidades e as competências”. Sei que para ser uma médica veterinária precisarei de conhecimentos técnicos, mas questiono: só isto basta? Humanistas como Marañon (1946) acreditam que não. Só isto nos aproxima dos monstros da razão.
 Por sua vez, as Diretrizes Curriculares para a formação dos veterinários propõem que “os alunos devem ter uma sólida formação generalista, crítica, humanista e reflexiva”, seja lá o que se pense deste “humanista”. O que me desesperava era a sensação que tinha da cegueira coletiva que parecia dominar os envolvidos nos debates sobre este campo. Perguntava: o que isto significa? As respostas começaram a se delinear quando passei a freqüentar o Laboratório de Humanidades da UFRPE. Pude compreender que se tratavam de uma formação profissional centrada no progresso científico do indivíduo e que isto é um dos sinais da desumanização.
 A partir das leituras e debates de alguns contos do livro “Papéis Avulsos”, da autoria de Machado de Assis, compreendi que, na Medicina Veterinária a predominância é da alma externa. Através da formação acadêmica desumanizada e desumanizadora o “veterinário eliminou o homem”. Hoje percebo que, para os estudantes e profissionais “As dores humanas, as alegrias humanas, só eram isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor”. [1] Eu os identifico com os Pomadas e seus pomadistas do conto “O segredo do bonzo”. São eles que rechaçam, menosprezam os veterinários patch adams, libertos de medalhões e desprovidos de narizes metafísicos, os que constituem a classe dos “loucos”, “os viajados”.
 A partir de mais uma de minhas leituras no LabHum concluo da seguinte forma: eu prefiro ver minha cara de mulher ridícula, verdadeira e humana, que chora e, às carreiras, sobe as escadas de um anfiteatro para abraçar alguém com quem me identifico na mesma dor. Quero ter minha alma interior... quero saber que me tornarei uma veterinária, mas não perderei minha humanidade.

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1- Assis, Machado de. Papéis Avúlsos. São Paulo: Martin Claret, 2006. 

Completo esse texto, se as autoras me permitem, com um detalhe especial que a Caroline Coenga acrescentou à apresentação:

Precário, provisório, perecível;
Falível, transitório, transitivo;
Efêmero, fugaz e passageiro
Eis aqui um vivo, eis aqui um vivo!

Impuro, imperfeito, impermanente;
Incerto, incompleto, inconstante;
Instável, variável, defectivo
Eis aqui um vivo, eis aqui...

E apesar...
Do tráfico, do tráfego equívoco;
Do tóxico, do trânsito nocivo;
Da droga, do indigesto digestivo;
Do câncer vil, do servo e do servil;
Da mente o mal doente coletivo;
Do sangue o mal do soro positivo;
E apesar dessas e outras...
O vivo afirma firme afirmativo
O que mais vale a pena é estar vivo!

É estar vivo
Vivo
É estar vivo

Não feito, não perfeito, não completo;
Não satisfeito nunca, não contente;
Não acabado, não definitivo
Eis aqui um vivo, eis-me aqui
.

Lenine - Vivo