quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Breves, brevíssimas notas sobre consciência, conscientizar(ção), Alice, Matrix e Sociedade dos Poetas Mortos. O que tem em comum?

Este é um pequeno ensaio [ou nota, como o próprio título diz] produzido pela professora Rozélia Bezerra, coordenadora do Laboratório de Humanidades da UFRPE.
 
Breves, brevíssimas notas sobre consciência, conscientizar(ção), Alice, Matrix e Sociedade dos Poetas Mortos. O que tem em comum?
 
Por Rozélia Bezerra
Na terça-feira (07 de junho de 2011) nos reunimos no LabHum-UFRPE para continuar a leitura de Alice Através do Espelho. Lá pelas tantas, chegamos no ponto de debater a pressa da rainha e sua corrida desenfreada com Alice. Foi quando alguém perguntou: Correr para que? Para chegarmos em que ponto? E Máina falou da loucura da universidade, da corrida desenfreada pelo tal curriculum lattes, da afobação que se vive, dos baobás, poucos, mas poderosos, alimentados pela corrida científica.  Aí alguém lembrou que só entra nessa correria quem assim o deseja, que quem tem consciência não faz isto. Foi quando questionei: Então, o que é consciência? Alguém falou de “ego, super-ego, id”. Carol falou que treme nas bases quando ouve estes termos. E eu perguntei: Alguém é capaz de conscientizar o outro? E Maria Clara...“desisto, não sei o que é. Acho que é moral”. E Rhayssa lembrou de Paulo Freire, e disse que "não, não se conscientiza o outro". Nesse ponto chegou-se à conclusão: consciência é algo que a gente tem ou não. Vinda de fora passamos a ser doutrinados.
Pois bem, a partir daqui prefiro trazer algumas notas. Primeiro esclarecer que é impossível esgotar o tema, principalmente, em tão pouco tempo como é o LabHum e mesmo aqui neste texto, por isto mesmo as notas, anotações.
As meninas (elas sabem quem são) disseram que pegaram uma mania de analisar a etimologia das palavras para compreendê-las. Então vamos fazer essa digressão para segui-las e para tentar compreender a tal consciência, conscientizar(ção). Co, cum, dá a idéia de contiguidade, continuação, companhia. Por sua vez, ciência, (do latim sciēns-entis) significa conhecimento, saber, informação. Portanto, consciência (do latimconsciens-tes) significa ter conhecimento de algo e conscientizar-se é tomar consciência de uma dada realidade concreta, que tanto pode ser existencial, quanto social. Isto não é fácil e deriva de um longo esforço.
Tem um blog que gosto porque nos fala, de modo simples sobre de coisas complexas[1]. Considero feliz o que o dono dele (nem sei se é assim que fala) escreveu sobre conscientizar-se. Olha só: “un ciego no ve las cosas porque alguien se las describa. Tiene que verlas él mismo. A ese ver él mismo es a lo que podemos llamar concientizarse, o sea, a una especie de comprensión que nace de un esfuerzo prolongado.Porque implica una lucha y conquista personal de la libertad, de la autonomía del sujeto, y, como decía Paulo Freire, la libertad es un parto lento y doloroso”.
E eu pergunto: quem quer algo difícil e doloroso? É tão mais fácil a efemeridade do moderno! A certeza conferida pelo moderno. A indiferença que este moderno favorece. E isto nos leva a correr e só ver, de passagem, as coisas e as pessoas que estão ao nosso redor. Seja correndo com a Rainha, seja correndo atrás do Coelho Branco, estamos correndo. E, se não tomarmos cuidado, daqui a pouco estaremos repetindo o que eles dizem “Mais rápido, mais rápido...é tarde, estou atrasado, estou atrasado”.
Neste ponto lembro de filmes: “Matrix” (com sua fé absoluta na ciência e o esquecimento do humano e no ser indiferente) Por fim, chamo a atenção para uma coisa: o fato de conhecermos um caminho nos leva, necessariamente, a enveredar por ele ou somos livres para uma escolha? Recorro ao filme  “Sociedade dos poetas mortos” para pensar sobre a vida ser feitas de escolhas e ser um poema. Por isto reforço a pergunta essencial que o professor faz aos meninos: “com qual verso você quer contribuir?”.


[1] http://educayfilosofa.blogspot.com. Por Marcos Santos Gómez.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

I Colóquio Internacional de Humanidades e Humanização em Saúde


O Centro de História e Fisolofia das Ciências da Saúde - CeHFi da UNIFESP irá realizar nos dias 16, 17 e 18 de Novembro de 2011 o I Colóquio de Humanidades e Humanização em Saúde. O evento promoverá o encontro de estudiosos da temática humanização, um espaço de encontro e discussão de ideias e experiências realizadas nos âmbitos nacional e internacional.

Para maiores informações acessar o site: http://www.unifesp.br/centros/cehfi/1o_coloquio/index.html

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mudança no local do Colóquio de Medicina Veterinária

Pessoal, houve uma modificação APENAS NO LOCAL do Colóquio de Medicina Veterinária desse mês.

Será no D.A. VETERINÁRIA!
MESMO HORÁRIO E DATA.


Grande abraço e vejo vocês lá!

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Colóquio de Medicina Veterinária: o ensino da medicina veterinária

 
Olá, pessoal.

O D.A. Humanidade e o Laboratório de Humanidades convidam todos a participar do
 
COLÓQUIO DE MEDICINA VETERINÁRIA: o ensino da Medicina Veterinária.

a ser realizado no ANFITEATRO da REPRODUÇÃO do Hospital Veterinário

pela manhã, das 9:00 às 12:00 horas
a tarde, das 14:00 às 17:00 horas

O que acontece no ensino da medicina veterinária hoje em dia que faz com que estudos indiquem que somos os estudantes mais deprimidos dentre todos os outros?

Vai ser muito interessante tentar responder isso!

Grande abraço

terça-feira, 18 de outubro de 2011

II Cine-debate No Escurinho do D.A.



Oi, gente!!
O Diretório Acadêmico (D.A.) de Medicina Veterinária e o Laboratório de Humanidades da UFRPE promovem, nesta quarta-feira (19/10), o cine-debate Escurinho do D.A, em duas sessões, das 9h às 12h e das 14h às 17h, no auditório do Departamento de Medicina Veterinária (DMV). Será exibido o filme Sociedade dos poetas mortos.
Após a exibição, o público debate sobre os assuntos abordados, incluindo as questões sociais, as relações com a profissão e a ética, entre outros temas.
Mais informações pelo telefone: 3320.6443 ou no blog:http://www.humanidadevet.blogspot.com/

domingo, 11 de setembro de 2011

Um admirável Novo Tempo

Por Rozélia Bezerra 


Hoje, 10 de setembro de 2011, fui tomar café da manhã e me lembrei da música de Ivan Lins chamada “Novo Tempo”. Tudo porque amanheci pensando no turbilhão de emoções que cercou a estréia do “No escurinho do DA – Cinedebate”.  Projeto parceiro entre o Diretório Acadêmico de Medicina Veterinária – UFRPE – Dois Irmãos e o LabHum – UFRPE. Os encontros ocorrem mensalmente. Estreou neste dia 09 de setembro em virtude de ser a data de escolha para comemorar o Dia do Médico Veterinário.

O filme? Nem é um clássico, daqueles imorredouros. È uma película bem recente (2011) chamada “Água para elefantes”. Teve exibição pela manhã e à tarde. Ao fim de ambas, carregadíssimas de emoção, todos, meninos e meninas, choravam. Ora, meninos não choram! Não é assim que aprendemos?!  Mas, não é assim que se dá na prática (pelo menos, às vezes).
A grande conclusão que chegamos: o ensino “hard” na Medicina Veterinária está nos desumanizando. Vimos que sentimentos não podem ficar de fora da formação de quem se decidiu ser médico e médica. A clínica é importante, a cirurgia é importante, mas a experiência extra da vida é necessária. Treinar, como a universidade faz, não nos torna um médico melhor, nem pessoa melhor. É preciso sentimento. Como reagir e se opor a isto? Através das Humanidades.
O LabHum – UFRPE se congratula com a gestão HUMANIDADES do  Diretório Acadêmico da Medicina Veterinária. Com esta nova parceria temos um desejo comum: que estejamos nos encaminhando para um Novo Tempo na formação do médico e médica veterinári@. Um tempo que nos traga de volta a Humanidade perdida.
Mando a letra da música porque creio que ela vale para o momento.

Novo tempo

No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver
Pra que nossa esperança seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança
No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
De todos os pecados, de todos enganos, estamos marcados
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça


quinta-feira, 1 de setembro de 2011

II Ciclo de Atividades - 2011.2

Começo das atividades de 2011.2


Iniciamos o II Ciclo de Atividades do LabHum da UFRPE  na terça-feira 30/08!

Estamos discutindo O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel, do Tolkien. Sair do conforto e tranquilidade que é a Vila dos Hobbits e enveredar por um caminho cheio de gente estranha, cavaleiros negros, dúvidas e perigos foi no mínimo desafiador para o Frodo. Agora, depois de acompanharmos ele nos seus desafios, a gente sai do conforto e tranquilidade do dia-a-dia para pensar nos caminhos que a gente tem que trilhar e observar esses caminhos sob a luz diferente da Terra-Média.
 
A primeira reunião já levantou questões bem interessantes, como: a inocência é a ausência da culpa?
 
As reuniões continuam nas terças-feiras das 12:00 às 13:30.
 
Participe e lembre-se: as "histórias de não leitura" são muito importantes também! Você não precisa ter lido a obra para participar das reuniões! Seu interesse já é muito importante!
 
Até mais!
 
 

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Educar para a vida ou treinar para o mercado? Hã?!.

Por Rozélia Bezerra.

Para iniciar esta conversa trago uma provocação seríssima, feita pelo meu amigo e, apesar de tão distante, companheiro de trabalho, o professor Rafael Ruiz. Eu me preparava para ir apresentar minha tese para o grupo de professores e estudantes que compõem o Grupo de Trabalho que ora debate a elaboração do Projeto Político Pedagógico do Curso de Medicina Veterinária da UFRPE. Nós conversávamos, pelo e-mail, sobre a formação de nossos jovens (e nem tão jovens) estudantes. Ele me dizia que as

[...] habilidades e competências são coisas técnicas que se ensinam com o treino. Treinar, a gente treina cachorro. O que é preciso é educar, não treinar. E para isso nem as habilidades nem as competências são suficientes. Ou se tem virtude, ou não se tem. Shakespeare disse tudo sobre o mundo moderno: ser ou não ser. essa é a questão. Parecer é precisamente o que se consegue com habilidades....parecer ser competente. Mas ser competente é outra coisa (RUIZ, 2011).

Passam-se semanas. Continuamos nos debates sobre a formação do Médico Veterinário. Novamente, a luta entre ser ou não ser cientista. Treinar ou não treinar, eis a questão.
É sábado. Acordo-me muito cedo e vou ler. Termino Dostoievski (Uma história fantástica) que me falou da necessidade urgente de humanizar o humano. Hã?! De sentir simpatia pelo outro e olhar em seu rosto. Aí pego um artigo de Fernando Cembranelli, sobre um projeto de humanização em saúde e ele me pergunta de modo direto: um projeto de humanização para que e para quem? E me diz que é preciso humanizar o humano, ter simpatia pelo outro e olhar para o rosto do outro. Hã?! Como assim?!
 Séculos separam os autores, Fiódor e Fernando, porém eles se irmanam no e através do apelo pela humanização do humano. Aí, me veio a idéia de um outro filósofo: Emmannuel Lévinas que, também nos fala dessa necessidade de olharmos uns no rosto do outro. E meu pensamento vagueia pela a aridez das salas de aula: que espaço é este? Elas são arrumadas de modo a não permitirem as trocas de olhares. O que se mira é a nuca, na maioria das vezes curvadas sobre um caderno, ou, tesas porquê postas naquele que professa aquilo que acredita ser a sua (del@)) verdade. Aqui já deu para perceber que me refiro ao professor que fala, fala e fala...e dos, literalmente, alumnis que escutam, escutam e escutam, passivos. É o momento de mirar um rosto que, por vezes, não é o espelho de ninguém. Um espelho machadiano, o espelho do Alferes[1]...
Antes de terminadas as divagações e leituras, minha barriga lembra uma necessidade básica do ser vivente: comer. Vou cuidar do café da manhã, meu e de meus dois gatinhos.

Universidade: clone do mercado?

Como, lavo a louça e volto para a rede e fico a olhar a paisagem. As casuarinas, como braços que se erguem para o céu, se movem, rítmicas, lentas. Lembram uma música de Los Hermanos[2], que fala do vento entrando pela fresta de uma janela, que lembra minha infância na, pequeníssima, Gravatá do Ibiapina (está no google, procurem) e das histórias de cruviana...e eu deitada na rede de meu quarto, agora sinto que é a minha vez de perguntar: quando perdemos a humanidade? E quando isto acontece nos transformamos em que?
Aí, cansada de largatear, me apego a outra leitura.[3] Desta vez é uma coletânea de artigos organizada por Renato Janine Ribeiro[4]. Na apresentação feita por ele achei, muito bem exposta, diga-se de passagem, a pergunta que, ainda, permeia os debates do GT Coordenação do curso de Medicina Veterinária: o curso deve Educar para a vida ou treinar para o mercado?
Olha só, Janine chama isto de “clonar o mercado” (p.15).
Hã!? Como assim?! Deve, então, a universidade clonar o mercado? Ouvindo alguns professores da Veterinária, a maioria que ouvi, diz que sim. Some-se o fato que, para termos o respeito da sociedade, o treinamento deve ser cientificista e com regras. Não retire de mim minha carga de horas-aula senão não terei tempo de formar um cientista. A lebre maluca de Alice...  
Quando a universidade pensa em clonar o mercado sua prática de ensino será pautada no treinamento d@[5] estudante. A formação terá como meta as competências necessárias para ocupar um cargo. Neste caso, a universidade será um simulacro da empresa que absorverá o futuro profissional. Sua proposta curricular privilegiará as disciplinas escolares voltadas para atender a demanda do mercado. Quem deve treinar o estudante é a empresa que deseja ter um empregado com habilidade. A universidade deve conduzir o estudante em seu processo de formação total, inclusive a técnica, mas também a arte, inclusive a da vida.
Na minha inquietude habitual, lembro de um autor que estuda o Currículo. Paro de ler Janine. Vou lá na estante e pego o livro de Miguel Arroyo. Em seu mais recente estudo sobre Currículo (2011) lá na página 102 ele considera que “Quando os educandos são reduzidos a empregáveis a docência transforma-se em treinamento”.
Palmas para Rafael Ruiz.
Casa Forte, no Recife.
2011.




[1] Conto que me lembra a História da Medicina, quer humana, quer Veterinária...
[2] Maria Clara, labhumanina como eu sabe do que falo...
[3] O sábado pela manhã é convidativo porque não faço nada por obrigação, nem tenho a correria dos dias que tem feira como extensão. Todos tão corridos e atarefados, mal dá tempo de saber quem sou de verdade. A pausa nessa correria toda é a terça-feira entre meio dia e 13:30, quando nos reunimos no Laboratório de Humanidades. O oásis na aridez do Departamento de Medicina Veterinária da UFRPE.
[4] RIBEIRO, Renato Janine. Apresentação do Organizador. In: HUMANIDADES um novo curso na USP. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 11-30.
[5] Usarei a convenção @ para me referir ao gênero masculino e feminino.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Os “Papéis Avulsos” de Machado de Assis e os sinais da desumanização na formação dos médicos veterinários.

Este texto  foi originalmente publicado e apresentado no V Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, evento que ocorreu em abril de 2011, em São Paulo. É  de autoria da estudante Caroline Coenga, discente da Medicina Veterinária da UFRPE, juntamente com a professora Rozélia Bezerra.

Os “Papéis Avulsos” de Machado de Assis e os sinais da desumanização na formação dos médicos veterinários.

Caroline Coenga e Rozélia Bezerra

Escrevo este trabalho em tom confessional porque sinto necessidade de fazer minha narrativa sobre a formação desumanizadora que o ensino da Medicina Veterinária oferece a seus graduandos e de como as humanidades constituíram um meio para refletir sobre este fenômeno.
Como representante nacional dos estudantes do curso de Medicina Veterinária, tenho participado de seminários e encontros que debatem esta formação. As proposições curriculares trazem fragmentos de um discurso liberal “o sistema educacional deve ser tão eficiente quanto qualquer empresa econômica”. Ou pretendem copiar “precisamos construir no Brasil as vertentes dominantes da educação estadunidense”. Ou então enveredam pelos caminhos das “habilidades e as competências”. Sei que para ser uma médica veterinária precisarei de conhecimentos técnicos, mas questiono: só isto basta? Humanistas como Marañon (1946) acreditam que não. Só isto nos aproxima dos monstros da razão.
 Por sua vez, as Diretrizes Curriculares para a formação dos veterinários propõem que “os alunos devem ter uma sólida formação generalista, crítica, humanista e reflexiva”, seja lá o que se pense deste “humanista”. O que me desesperava era a sensação que tinha da cegueira coletiva que parecia dominar os envolvidos nos debates sobre este campo. Perguntava: o que isto significa? As respostas começaram a se delinear quando passei a freqüentar o Laboratório de Humanidades da UFRPE. Pude compreender que se tratavam de uma formação profissional centrada no progresso científico do indivíduo e que isto é um dos sinais da desumanização.
 A partir das leituras e debates de alguns contos do livro “Papéis Avulsos”, da autoria de Machado de Assis, compreendi que, na Medicina Veterinária a predominância é da alma externa. Através da formação acadêmica desumanizada e desumanizadora o “veterinário eliminou o homem”. Hoje percebo que, para os estudantes e profissionais “As dores humanas, as alegrias humanas, só eram isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor”. [1] Eu os identifico com os Pomadas e seus pomadistas do conto “O segredo do bonzo”. São eles que rechaçam, menosprezam os veterinários patch adams, libertos de medalhões e desprovidos de narizes metafísicos, os que constituem a classe dos “loucos”, “os viajados”.
 A partir de mais uma de minhas leituras no LabHum concluo da seguinte forma: eu prefiro ver minha cara de mulher ridícula, verdadeira e humana, que chora e, às carreiras, sobe as escadas de um anfiteatro para abraçar alguém com quem me identifico na mesma dor. Quero ter minha alma interior... quero saber que me tornarei uma veterinária, mas não perderei minha humanidade.

 ____________________________________________
1- Assis, Machado de. Papéis Avúlsos. São Paulo: Martin Claret, 2006. 

Completo esse texto, se as autoras me permitem, com um detalhe especial que a Caroline Coenga acrescentou à apresentação:

Precário, provisório, perecível;
Falível, transitório, transitivo;
Efêmero, fugaz e passageiro
Eis aqui um vivo, eis aqui um vivo!

Impuro, imperfeito, impermanente;
Incerto, incompleto, inconstante;
Instável, variável, defectivo
Eis aqui um vivo, eis aqui...

E apesar...
Do tráfico, do tráfego equívoco;
Do tóxico, do trânsito nocivo;
Da droga, do indigesto digestivo;
Do câncer vil, do servo e do servil;
Da mente o mal doente coletivo;
Do sangue o mal do soro positivo;
E apesar dessas e outras...
O vivo afirma firme afirmativo
O que mais vale a pena é estar vivo!

É estar vivo
Vivo
É estar vivo

Não feito, não perfeito, não completo;
Não satisfeito nunca, não contente;
Não acabado, não definitivo
Eis aqui um vivo, eis-me aqui
.

Lenine - Vivo

quinta-feira, 31 de março de 2011

Em Todos os Sentidos - Olfato: O Sentido Mudo.

Nosso primeiro texto de uma série de cinco. Por isto o título "Em todos os sentidos"


EM TODOS OS SENTIDOS
Por Rozélia Bezerra


1. OLFATO: O SENTIDO MUDO.

O que dizer do olfato?
            Isabel Allende[i] nos diz que é nosso sentido mais antigo. Que o gosto e o olfato são inseparáveis. Em sua prosa ligeira escreveu “A tentação do café não nasce do sabor, que deixa um resquício de fumaça na lembrança, mas dessa fragrância intensa e misteriosa do bosque remoto. Com os olhos fechados e o nariz tampado não podemos distinguir entre uma batata crua e uma maçã, entre gordura e chocolate”.
Por sua vez,  Helen Keller, uma americana, cega, surda e muda dizia que “O olfato é um mágico poderoso que nos transporta, percorrendo a distância de milhares de milhas e de todos os anos que vivemos...Mesmo quando apenas penso nos cheiros, minhas narinas ficam plenas de aromas que despertam doces memórias de verões passados e campos distantes.”
Segundo Diane Ackerman[ii], os cheiros tem forma e podem ser agrupados em categorias básicas: mentolado (menta, hortelã), etéreos (pêras), desagradável (ovos podres). Os alimentos, em grande parte, dependem de seu cheiro para terem sabor. Para ela “pensamos porque cheiramos”.
O olfato foi estudo foi estudado por um médico francês chamado Nöel Hallé que resolveu analisar os odores parisienses nas margens do Sena.
Chico Science dizia que “O Recife fede”.
Mas, Al Pacino, no filme “Perfume de Mulher”  é quase mitológico. Tem aquele outro filme lá “O Perfume”. Eu tinha lido o livro lá pelos idos de 1990. È avassalador.
Mas que melhor nos fala de olfato  é Adélia Prado.

      A menina do olfato delicado – Adélia Prado.
 
Quero comer não, mãe
(no canto do fogão o caldeirão esmaltado)
quero comer não, mãe
(arroz com feijão, macarrão grosso)
quero comer não, mãe
(sem massa de tomate)
quero comer não, mãe
(com gosto de serragem)
quero comer não, mãe
(com cheiro de carbureto)
quero comer não,
(vi um gato no caminho, fervendo de bicho)
quero comer não, mãe
(quando inaugurar a luz elétrica e o pai
consumir com o gasômetro, eu como).
Vamos ficar no escuro, mãe. Põe lamparina,
põe gasômetro não, o azul dele tem cheiro,
o cheiro entra na pele, na comida, no pensamento,
toma a forma das coisas. Quando a senhora tem
raiva sem xingar é igual a ruindade do gasômetro,
a azuleza dele. Vomito mãe. Vou comer agora não.
Vou esperar a luz elétrica


 


[i] No livro Afrodite.
[ii] Uma história Natural dos sentidos, Bertrand Russel, 1990.
.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Além do Limpo e do Sujo: Os Sentidos e Sentimentos na Prática da Higiene Alimentar.

Com este trabalho inicio uma série de 6 textos sobre os "Sentidos e sentimentos na alimentação". Como se referem aos cinco sentidos, haverá uma para cada dia da semana. Convidei uma poeta bem mineira para abrilhantar e humanizar os escritos. Trata-se de não outra que não sossa Adélia Prado. Sentem-se à mesa com ela e deliciem-se...

Rozélia Bezerra - coordenadora LabHum-UFRPE.

Além do limpo e do sujo: os sentidos e sentimentos na prática da higiene alimentar.
Por Rozélia Bezerra

Aula-banquete para abertura da disciplina Higiene e Segurança Alimentar. Em 22/03/2011.

Senti-me particularmente honrada quando a Professora Virgínia me chamou para ministrar esta aula de encerramento do semestre letivo no curso de Gastronomia. Ela me explicou que haveria um café da manhã e, em seguida, eu ministraria a palestra.  Imediatamente respondi: - Será uma comemoração...ou seja, é comer e lembrar, festejar e lembrar, e, neste momento lembrei dos Banquetes e dos Symposium da antiguidade, cuja função era exatamente esta: comer e falar sobre alguma coisa de interesse da comunidade...tal qual ocorreu no Banquete de Platão, quando os convidados se reuniram para falar sobre o Amor.
Mas, voltando ao convite fiquei a me perguntar: Por que a professora me pediu isto? Para entendê-la, busquei o programa da disciplina para ver o objetivo: “utilizar os conhecimentos básicos de microbiologia para garantia da higiene e segurança na produção de alimentos”. Para conseguir isto, estudem-se leis, tratados, manuais, fluxogramas. A partir desta perspectiva fiquei, como se diz popularmente, matutando e me fiz a seguinte pergunta: e as pessoas envolvidas neste processo não contam? Eu mesma achei a resposta: Contam tanto que a professora Ana Virgínia me chamou para falar sobre outras faces da higiene. Disse-me ela “Fale alguma coisa sobre “além do limpo e do sujo na higiene alimentar”.  Aí veio uma questão de lógica: o tema “além do limpo e do sujo na higiene alimentar” é muito amplo. Como superar este dilemaa?! Pois muito bem, como estava aprontando aula para outro curso sobre a higiene dos sentidos e sentimentos, achei por bem falar para vocês sobre isto. Deste modo dei o seguinte título à nossa conversa: Além do limpo e do sujo ou os sentidos e sentimentos na prática da higiene alimentar.
Veio então, uma questão de método: como farei para abordar sentidos e sentimentos voltados para a higiene dos alimentos? E, então, tive uma idéia: Ler, e, ao mesmo tempo, cheirar, tocar, ver, ouvir e comer com vocês. Ou seja, usar todos os sentidos e os sentimentos... e, ao mesmo tempo, comemorar com vocês...comer e memorar, comer e lembrar com vocês. Para abrir a janela da alma, convido Adélia Prado, através de um poema intitulado: Sensorial.



SENSORIAL – Adélia Prado
Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons pra uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdôo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.

segunda-feira, 21 de março de 2011

A Literatura na Formação do Homem

Este texto foi escrito originalmente para ser apresentado durante o Seminário de Humanização em Saúde promovido pelo Laboratório de Humanidades do Departamento de Medicina Veterinária da UFRPE. O tema do evento foi "A formação humanística do médico do século XXI".
Deixo a todos e todas o convite para a leitura de um texto fundador para a compreensão da importância das humanidades na humanização.
 
Ao prof. Rafael meu cordial abraço e o agradecimento pela permissão de publicar o texto aqui.
 
Um abraço
Rozélia Bezerra.
Coordenadora LabHum-UFRPE
 
A Literatura na Formação do Homem

Por Dr. Rafael Ruiz
UNIFESP/Guarulhos
 
Talvez já tenham lido a obra de J.D. Salinger, O apanhador no campo de centeio, (se não leram, leiam ainda neste semestre), onde a personagem central, Holden Caulfield tem um sonho em que vê um monte de meninos alegres e despreocupados brincando num campo de centeio. Ele os olha desde um outeiro e percebe que os garotos não estão enxergando que no fim do campo há um abismo, por onde, sem dar-se conta, vão caindo. Dois capítulos depois, Holden vai à casa do Prof. Antolini e depois de algumas frases intranscendentes, o professor lhe diz que tem a impressão de que o Holden está caindo por um abismo cuja queda é especial.
É do tipo horrível, porque a gente cai, cai e não percebe nem sente nada. Não nos damos conta que estamos caindo, mas estamos. É o tipo de queda –diz o professor- que só acontece com aqueles que procuram alguma coisa que o seu próprio meio não pode lhes proporcionar e abandonam a busca. Abandonam-na antes mesmo de começá-la[1].
Qual é o meio em que estamos? civilização técnica. Prometeram-nos tudo: felicidade, vida justa, progresso contínuo, conhecimento e sabedoria. O que é que não nos pode dar? o conhecimento do que é o homem, o conhecimento de nós mesmos. Não sabemos mais o que é ser humano
Dostoiévski, Sonho de um homem ridículo:
p. 118:
E daí que sejamos mentirosos, maus, injustos, sabemos disso e deploramos isso, e nos afligimos por isso a nós mesmos, e nos torturamos e nos castigamos mais até, talvez, do que aquele juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não sabemos. Mas temos a ciência, e por meio dela encontraremos de novo a verdade, mas desta vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida é superior à vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria nos dará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade.
Era o que me diziam, e depois de tais palavras, cada um passava a amar mais a si mesmo do que aos outros, e nem podia ser diferente. Cada um tornou-se tão cioso da sua individualidade que não fazia outra coisa senão tentar com todas as suas forças humilhar e diminuir a dos demais. E a isso dedicava a sua vida.
Parece-me um bom retrato do ponto em que estamos: cada um cuida de si e dedica-se a humilhar e diminuir os demais, porque é a única forma de garantir o sucesso pessoal.
É a atitude do homem moderno que se vai tornando cético e cínico e indiferente a tudo e fechado sobre si mesmo. Poderíamos perguntar-nos: o que foi que aconteceu com esse nosso mundo moderno que tanto nos prometia?
Haveria muitas respostas, mas prefiro escolher uma, da mão de Shakespeare em A Tempestade, quando faz Stéfano dizer exatamente o contrário do que dizia Dostoiévski:
Cada um cuide só dos outros, sem se importar consigo mesmo, porque tudo só depende da sorte...
A “façanha” da Modernidade consistiu em não aceitar que não estamos no controle. Que há sempre algo que escapa do nosso controle e da nossa organização racional do mundo. Que, afinal, estamos nas mãos de Tyché, a deusa da sorte, que os latinos chamaram de Fortuna e os cristãos de Providência.
A ciência e a técnica dar-nos-iam o poder sobre a Natureza e o controle de nós mesmos e das coisas. Dependendo da sorte, dependíamos uns dos outros. Dependendo do saber, somos donos de nós e não dependemos de ninguém. O século XX assistiu ao desmoronar dos relacionamentos. Somos incapazes de criar relações, de formar vínculos. Temos tanto medo de sofrer, revolta-nos tanto sentir-nos vulneráveis e carentes que preferimos não ter vínculo nenhum e, quando tentamos ter, não sabemos como fazer, porque já criamos uma couraça ao nosso redor.

Susanna Tamaro, Vá aonde seu coração mandar (p. 15)
A infância e a velhice se parecem. Em ambos os casos, por motivos diferentes, somos bastante vulneráveis, ainda não somos –ou já deixamos de ser- partícipes da vida ativa, o que nos permite viver com a sensibilidade aberta, não-esquemática. É durante a adolescência que uma invisível couraça começa a formar-se ao nosso redor. Forma-se durante a adolescência, e continua endurecendo por toda a vida adulta. O processo do seu crescimento é um tanto parecido com o das pérolas: quanto maior e mais profunda a ferida, mais forte a couraçaa que se forma em volta. Mais tarde, no entanto, como uma roupa que se usou demasiado, nos pontos de maior atrito começa a desgastar-se, deixa entrever a trama, rasga-se de repente a qualquer movimento brusco. No começo, nem nos damos conta, ainda nos achamos totalmente envolvidos pela couraça, até que um dia, diante de alguma coisa boba e sem saber por quê, de repente choramos como uma criança.
De forma que, quando afirmo que entre nós duas surgiu uma divergência naturaal, é justamente isto que quero dizer. Na época em que a sua couraça começou a formar-se, a minha já estava em frangalhos. Você não suportava as minhas lágrimas, e eu, a sua improvisada dureza.
Tamaro, p. 16
Volta à mente o dia da sua partida: lembra como ambas estávamos nervosas? Você não me deixou levá-la ao aeroporto, e cada coisa que lhe pedia não esquecer provocava de você a mesma resposta: Estou indo para a América, não para o deserto. Quando da porta, com a minha voz odiosamente estridente gritei: cuide-se bem, despediu-se sem se virar dizendo: Tome conta do Buck e da rosa.
Para dizer a verdade na ora fiquei um tanto decepcionada com a sua despedida. Velha e sentimental como sou, esperava um quê de diferente e mais banal, algo como um beijo ou uma frase carinhosa. Só à noite, quando perambulava de roupão pela casa sem conseguir dormir, percebi que cuidar de Buck e da rosa queria dizer cuidar da sua parte que continua a viver ao meu lado, a sua parte feliz. E também percebi que na rispidez daquela ordem não havia insensibilidade, mas sim a tensão extrema de quem está prestes a chorar. É a tal couraça de que falei. Por enquanto, a sua lhe fica tão justa, que você quase não consegue respirar. Lembra-se do que costumava dizer-lhe nos últimos tempos? as lágrimas que não saem depositam-se no coração, com o passar do tempo incrustam-se nele e paralisam-no, tal como os depósitos calcários se incrustam e paralisam as engrenagens de uma máquina de lavar.
Voltando a Salinger: A conversa fica a cada minuto mais pesada e desesperadora, e o professor, preocupado com o futuro do aluno, acaba por dar-lhe um conselho:
você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enjoada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia[2].
É isso que a Literatura pode proporcionar. Ficar enjoados com o comportamento humano quando é execrável. Ficar revoltados com o comportamento humano quando é injusto. Ficar enjoados, ficar revoltados e confusos e assustados e, ao mesmo tempo, saber que muitos outros homens já se sentiram assim, enjoados como nós, tristes como nós, assustados como nós. Isso nos ajuda a não enlouquecer, a não desesperar e, mais, a não ficar indiferentes perante o mundo que nos rodeia
Dostoievski, Sonho, p. 92
Talvez porque na minha alma viesse crescendo uma melancolia terrível por causa de uma circunstância que já estava infinitamente acima de todo o meu ser: mais precisamente –ocorrera-me a convicção de que no mundo, em qualquer canto, tudo tanto faz(...) Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber e a sentir com todo o meu ser que diante de mim não havia nada. No começo me parecia sempre que, em compensação, tinha havido muita coisa antes, mas depois intuí que antes também não tinha havido nada, apenas parecia haver, não sei por quê. Pouco a pouco me convenci de que também não vai haver nada jamais. Então de repente parei de me zangar com as pessoas e passei a quase nem notá-las(...)sobre aquilo que eu tinha para pensar, já então cessara completamente de pensar: tudo me era indiferente. E se ao menos eu tivesse resolvido as questões; ah, não resolvi nenhuma, e quantas havia? Mas para mim tudo ficou indiferente, e as questões todas se afastaram.
Por que Literatura? porque precisamos aprender a ser humanos. E a Literatura é o melhor laboratório que temos para isso.
Qual foi o sucesso da Modernidade? a racionalização dos meios e procedimentos em favor da eficácia técnica. A aposta da Modernidade foi em favor da razão. É o eterno problema da educação. Todos na História quiseram educar. A questão é: o que foi que educou a Modernidade em nós? ciência e técnica. razão e eficiência.
            E essa aposta podemos vê-la bem ilustrada nas Viagens de Gulliver, de Swift. Os gigantes apostavam na matemática “que é inteiramente aplicada ao que pode ser útil na vida, ao progresso da agricultura e de todas as artes mecânicas (...) mas de idéias, entidades, abstrações e trascendências, nunca lhes pude enfiar na cabeça a menor concepção” (p. 154).
Encontramo-nos com uma sociedade perfeitamente cartesiana, onde a matemática e a geometria são as bases de qualquer conhecimento e onde o critério para a vida social é a utilidade e o progresso. Tudo o que não venha a contribuir pra essas metas passa a ser descartado. Acredita-se, como no país dos yahoos, que a razão cria no homemuma propensão geral a todas as virtudes” e, por isso, nos país dos yahoos se desconhece “a idéia do mal numa criatura racional”. De fato, todos os houyhnhnms tinham uma máxima, que mais tarde seria desenvolvida pelo Iluminismo: “cultivar a Razão e serem por ela inteiramente governados” (p. 308).
Diante desse homem racional, que, por ser racional, desconhece a idéia do mal, encontramo-nos com a garota Lisa, dos Irmãos Karamazov:
- queria dar-lhe a conhecer um desejo. Quero que alguém me faça sofrer, que case comigo, depois me torture, me engane e me abandone. Não quero ser feliz.
- enamorou-se da desordem?
- ah! quero a desordem. quero pôr fogo na casa. Imagino a coisa: irei às ocultas, absolutamente às ocultas, tratar de pôr fogo. Procuram apagá-lo, a casa arde. Sei e me calo. Ah! que coisa estúpida! que horror!
Fez um gesto de desgosto.
- Você vive na riqueza – disse Aliocha, em voz baixa.
- Será que vale mais viver pobremente?
- Sim.
- Não, não é verdade. Que eu seja rica e todos os outros pobres, comerei bombons, beberei creme e não darei a ninguém!....se for pobre, matarei alguém, talvez mate mesmo sendo rica. Por que me constranger?
- .... Você toma o mal pelo bem, é uma crise passageira...uma doença antiga talvez.
- Não, não quero fazer o bem, muito simplesmente quero fazer o mal, não há nenhuma doença.
- Por que fazer o mal?
- Porque não resta nada em parte alguma (p. 405-6).
A Modernidade, como as bruxas de Macbeth, estabeleceu uma indistinção entre o bem e o mal. Como dizia Ivan Karamazov, os homens queremos ser livres, mas não queremos viver com as consequências dos nossos atos: Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso. O homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de ter de discernir o bem e o mal (p. 190).
Qualquer discussão atual sobre o bem e o mal, sobre atos certos e errados passa necessariamente pela grande construção moderna da relativização desses conceitos. Há uma profunda sensação de tranquilidade de consciência quando conseguimos convencer-nos de que o que é bom para mim, pode ser mau para o outro. Contudo, torna-se difícil manter essa posição quando um Osama Bin Laden, por exemplo, afirma a sua ideia de bem e estoura dois aviões nas torres gêmeas, ou quando soldados sérvios promovem a limpeza étnica estuprando mulheres kosovares: Ivan K. declarou há cinco dias atrás que nada no mundo obrigava as pessoas a amar os seus semelhantes, que não existia nenhuma lei natural ordenando ao homem que amasse a humanidade... que o egoísmo, mesmo levado até a perversidade, devia não somente ser autorizado, mas reconhecido como a saída mais necessária, a mais razoável e quase a mais nobre... Não haverá mais nada imoral, tudo será autorizado (p. 57).
De fato, o homem é um ser complexo. Bem mais complexo do que esse homem racional que a Modernidade acabou inventando. Sempre que se fala sobre o homem se faz referência a um homem teórico, conceitual e abstrato, como dizia Miguel de Unamuno:
Porque o adjetivo humanus me é tão suspeito quanto o seu substantivo abstrato humanitas, a humanidade. Nem o humano nem a humanidade, nem o adjetivo simples, nem o adjetivo substantivado, mas o substantivo concreto: o homem. O homem de carne e osso, que nasce, sofre e morre –sobre tudo morre-, que come, e bebe, e brinca, e dorme, e pensa, e quer, o homem que se vê e a quem se ouve, o irmão, o verdadeiro irmão.
Porque há outra coisa, que também chamam de homem, e é o sujeito de não poucas divagações mais ou menos científicas. E é o bípede sem penas da lenda, o zoón politicon de Aristóteles, o contratante social de Rousseau, o homo oeconomicus dos manchesterianos, o homo sapiens de Linneo ou, se se quiser, o mamífero vertical. Um homem que não é nem daqui nem dali nem desta época nem da outra, que não tem nem sexo nem pátria, uma idéia, em fim. Isto é, um não-homem.
(...) o homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal afetivo ou sentimental. E talvez o que o diferencia mais dos outros animais seja mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes raciocinar um gato do que rir ou chorar”. (Del sentimineto trágico, p. 9-10).
Essa mesma desconfiança no excessivo racionalismo moderno é a que manifesta a personagem de Susanna Tamaro, quando escreve para a sua neta:
(...) quem confia no próprio coração é um insensato, dizia amiúde Augusto citando a Bíblia. E por que cargas d´água deveria ser insensato? Talvez porque o coração se pareça com uma câmara de combustão? Porque está escuro lá dentro, há escuridão e fogo? A mente é tão moderna –pensa-se então- como o coração é antigo. Quem liga para o coração –pensa-se então- ainda está perto do mundo animal, do descontrolado, ao passo que quem cuida da razão se aproxima das mais elevadas reflexões. E se as coisas não fossem assim, se a verdade fosse exatamente o contrário? se fosse justamente esse excesso de razão o que desnutre a vida? (p. 61).
A Literatura precisamente porque nos coloca em contato com o concreto, porque nos tira do mundo das abstrações, das retóricas e dos conceitos, precisamente porque nos coloca em contato com os homens e as mulheres reais, com seus sonhos, seus medos, suas dores, suas alegrias, suas vilezas e suas grandezas, precisamente porque não nos fala do homem ou da mulher, mas de Hamlet, Otelo, Holden, Ana, Lisa ou Ivan, permite-nos conhecê-los na sua realidade prismática, complexa e muitas vezes tanto difusa como confusa e, precisamente por isso, permite-nos conhecer-nos a nós próprios.
Volto, de novo, à Tamaro:
Cresci, pois, com a sensação de ser uma espécie de macaco a ser treinado, e não um ser humano, uma pessoa com as suas alegrias, decepções, com a sua necessidade de ser amada. Este desconforto fez logo brotar em mim uma grande solidão, uma solidão que com os anos avultou-se, uma espécie de vazio pneumático em que me movia com os gestos lentos e desengonçados de um escafandrista. A solidão também nascia das perguntas, perguntas que fazia a mim mesma e às quais não sabia responder (p. 31).
Não sabemos responder porque talvez a resposta esteja em outro lugar, e não na razão. Sei que isto pode soar a conto de crianças, mas a Literatura permite-nos questionar-nos sobre questões que pensamos definitivas e dogmáticas, como a separação do subjetivo e do objetivo, a relativização do certo e do errado, a neutralidade das opiniões e das observações ou a separação entre razão e sentimento:
observando um dia as várias antenas que vibravam no ar, pensei que o homem cada vez mais se parece com um rádio capaz de sintonizar-se apenas numa faixa de frequência.... Tenho a impressão de que o uso excessivo da mente conduz aproximadamente aos mesmos resultados: de toda a realidade que nos cerca, só conseguimos perceber uma faixa restrita. E muitas vezes esta parte está entregue à maior confusão, pois nela imperam as palavras, e as palavras, na maioria das vezes, em lugar de abrir caminho para espaços mais amplos, só nos levam de volta ao ponto de partida.... A compreensão exige silêncio....A mente é prisioneira das palavras, se houver um ritmo que lhe seja próprio, só poderá ser o ritmo desordenado do pensamento; o coração, por sua vez, respira, de todos os órgãos é o único que pulsa, e é essa pulsação que lhe permite entrar em sintonia com pulsações mais amplas” (p. 62).
Essa percepção da insuficiência da racionalidade pode ser delicada, como a da Tamaro, ou pode ser visceral como a de Dostoiévski:
Realmente, eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, de repente, em meio a toda essa sensatez futura, surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e zombateira (lembrem, digo eu, da figura que a mídia veicula com o nome de Bin Laden) e pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?Isto ainda não seria nada, mas lamentavelmente ele encontraria sem dúvida alguns adeptos: assim é o homem (Memórias do subsolo, p. 38).
Assim é o homem! O que foi que aconteceu com o homem, o que foi que aconteceu conosco nessa sociedade moderna que não nos torna mais felizes? A Literatura tem o poder de encurtar as distâncias. Essas distâncias entre “objeto” e “sujeito” que o método analítico e científico tanto se empenha em manter. A Literatura provoca-nos, envolve-nos e acaba por converter em algo muito íntimo o texto escrito. Ela sempre nos interpela e aguarda uma resposta não apenas teórica, mas pessoal.
O que foi que aconteceu comigo?, pensei. A voz alta e enevoada de Morrie levou-me de volta aos anos de universidade, quando eu pensava que os ricos são maus, que camisa e gravata são uniforme de presidiário e que a vida sem liberdade de se levantar e ir embora não é vida. Que foi que aconteceu comigo?
Aconteceram os anos 1980. Aconteceram os 1990. Morte e doença, gordura no corpo e calvície aconteceram. Barganhei montes de sonhos por cheques cada vez mais gordos e nem percebi que estava fazendo isso (A última grande lição, p. 35).
Parece-me que só assim, envolvendo-nos, quebrando a cômoda armação que a distância e a objetividade criam em torno a cada um de nós, é que podemos ser capazes de questionar-nos sobre a nossa própria sociedade e cultura:
A cultura que temos não contribui para que as pessoas se sintam felizes com elas mesmas. É preciso ser fortes para dizer que, se a cultura não serve, não interessa ficar com ela.
...Em Wimbledon, eu fazia minhas refeições mo cub~iculo de madeira onde trabalhava e nada via de estranho nisso. Num certo dia muito tumultuado, um bando de repórteres perseguiu André Agassi e sua famosa namorada, Brooke Shields, e eu fui derrubado por um repórter inglês que mal murmurou um pedido de desculpa e seguiu em frente com as suas enormes lentes penduradas no pescoço. Pensei em mais outra coisa que Morrie dissera: tanta gente anda de um lado para outro levando vidas sem sentido. Parecem semi-adormecidas, mesmo quando ocupadas em coisas que julgam importantes. Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo errado. Só podemos dar sentido à vida dedicando-nos a nossos semelhantes e à comunidade e nos empenhando na criação de alguma coisa que tenha alcance e sentido (p. 41-2).
Voltamos à Tempestade de Shakespeare. Quatro séculos se passaram e as palavras de Stéfano são similares: Cada um cuide só dos outros, sem se importar consigo mesmo, porque tudo só depende da sorte...Há algo de humano nessa recorrência. Os homens mudam, os tempos mudam, os costumes mudam, mas o clássico é permanente. E o que a Literatura clássica nos diz sobre nós mesmos não é, de forma alguma, o que a ciência e a técnica nos dizem.
Quero acabar com um trecho de um poema de T. S. Elliot. Um poema de 1925. Os homens ocos. Penso que a falta de Literatura poderá levar-nos mais dias, menos dias, a esse lugar:
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.
.....
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

Disse que ia acabar, mas não, quero acabar com Holden, de novo. A Literatura ensina-nos algo que nenhuma outra disciplina nos ensina, e que o Prof. Antolini dá como último conselho a Holden: “Você começará a conhecer as suas medidas exatas, e vestirá a sua mente de acordo com elas[3]. É disso que se trata: encontrar as nossas medidas. Cada um as suas. Cada um de nós, que entra na vida cheio de sonho, de paixão e de entusiasmo não pode ser engessado pelo sistema técnico, recional e instrumental, tem de encontrar o espaço de liberdade necessário para encontrar as próprias medidas. Isso só é possível no encontro com as Artes e, especificamente, com a Literatura.


[1] SALINGER, J.D., O Apanhador no campo de centeio, 16 ª edição, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1951, p.182.
[2] Idem, p. 184.
[3] SALINGER, J.D., O Apanhador no campo de centeio, 16 ª edição, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1951, p. 185.