segunda-feira, 12 de março de 2012

Educar para a vida ou treinar para o mercado?


Por Rozélia Bezerra.

Para iniciar esta conversa trago uma provocação seríssima, feita pelo meu amigo e, apesar de tão distante, companheiro de trabalho, o professor Rafael Ruiz Nós conversávamos, pelo e-mail, sobre a formação de nossos jovens (e nem tão jovens) estudantes. Ele me dizia que as

[...] habilidades e competências são coisas técnicas que se ensinam com o treino. Treinar, a gente treina cachorro. O que é preciso é educar, não treinar. E para isso nem as habilidades nem as competências são suficientes. Ou se tem virtude, ou não se tem. Shakespeare disse tudo sobre o mundo moderno: ser ou não ser. essa é a questão. Parecer é precisamente o que se consegue com habilidades....parecer ser competente. Mas ser competente é outra coisa (RUIZ, 2011).

Esses momentos foram antecedentes à minha preparação para ir apresentar minha tese para o grupo de professores e estudantes que compõem o Grupo de Trabalho que ora debate a elaboração do Projeto Político Pedagógico do Curso de Medicina Veterinária da UFRPE.
Passaram-se semanas. Continuamos nos debates sobre a formação do Médico Veterinário. Novamente, a luta entre ser ou não ser cientista. Treinar ou não treinar, eis a questão.
É sábado. Acordo-me muito cedo e vou ler. Termino Dostoievski (Uma história fantástica) que me falou da necessidade urgente de humanizar o humano. Hã?! Como assim?! De sentir simpatia pelo outro e olhar em seu rosto. Aí pego um artigo de Fernando Cembranelli, sobre um projeto de humanização em saúde e ele (me) pergunta de modo direto: um projeto de humanização para que e para quem? E me diz que é preciso humanizar o humano, para ter simpatia pelo outro e olhar para o rosto do outro. Hã?! Como assim?! E isto é necessário?
 Séculos separam os autores, Fiódor e Fernando, porém eles se irmanam no e através do apelo pela humanização do humano. Aí, me veio a idéia de um outro filósofo: Emmannuel Lévinas que, também nos falou dessa necessidade de olharmos uns no rosto do outro. E meu pensamento vagueia pela a aridez das salas de aula: que espaço é este? Elas são arrumadas de modo a não permitirem as trocas de olhares. O que se mira é a nuca, na maioria das vezes curvadas sobre um caderno, ou, tesas porquê postas naquele que professa aquilo que acredita ser a sua (del@) verdade. Aqui já deu para perceber que me refiro ao professor que fala, fala e fala...e dos, literalmente, alumnis que escutam, escutam e escutam, passivos. É o momento de mirar um rosto que, por vezes, não é o espelho de ninguém. Um espelho machadiano, o espelho do Alferes[1]...
Antes de terminadas as divagações e leituras, minha barriga lembra uma necessidade básica do ser vivente: comer. Vou cuidar do café da manhã, meu e de meus dois gatinhos.

Universidade: clone do mercado?

Como, lavo a louça e volto para a rede e fico a olhar a paisagem. As casuarinas, como braços que se erguem para o céu, se movem, rítmicas, lentas. Lembram uma música de Los Hermanos[2], que fala do vento entrando pela fresta de uma janela, que lembra minha infância na, pequeníssima, Gravatá do Ibiapina (está no google, procurem) e das histórias de cruviana...e eu deitada na rede de meu quarto, agora sinto que é a minha vez de perguntar: quando perdemos a humanidade? E quando isto acontece nos transformamos em que?
Aí, cansada de lagartear, me apego a outra leitura.[3] Desta vez é uma coletânea de artigos organizada por Renato Janine Ribeiro[4]. Na apresentação feita por ele achei, muito bem exposta, diga-se de passagem a pergunta que, ainda, permeia os debates do GT Coordenação do curso de Medicina Veterinária: o curso deve Educar para a vida ou treinar para o mercado?
Olha só, Janine chama isto de “clonar o mercado” (p.15).
Hã!? Como assim?! Deve, então, a universidade clonar o mercado? Ouvindo a maioria dos professores do Departamento de Veterinária diz que sim. Some-se o fato que, para termos o respeito da sociedade, o treinamento deve ser cientificista e com regras. Não retire de mim minha carga de horas-aula senão não terei tempo de formar um cientista. A lebre maluca de Alice...  
Quando a universidade pensa em clonar o mercado sua prática de ensino será pautada no treinamento d@[5] estudante. A formação terá como meta as competências necessárias para ocupar um cargo. Neste caso, a universidade será um simulacro da empresa que absorverá o futuro profissional. Sua proposta curricular privilegiará as disciplinas escolares voltadas para atender a demanda do mercado. Ora, quem deve treinar o estudante é a empresa que deseja ter um empregado com habilidade. A universidade deve conduzir o estudante em seu processo de formação total, inclusive a técnica, mas também a arte, inclusive a da vida.
Na minha inquietude habitual, lembro de um autor que estuda o Currículo. Paro de ler Janine. Vou lá na estante e pego o livro de Miguel Arroyo. Em seu mais recente estudo sobre Currículo (2011) lá na página 102 ele considera que “Quando os educandos são reduzidos a empregáveis a docência transforma-se em treinamento”.
Palmas para Rafael Ruiz.
Casa Forte, no Recife.
2011.
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[1] Conto que me lembra a História da Medicina, quer humana, quer Veterinária...
[2] Maria Clara, labhumanina como eu, sabe do que falo...
[3] O sábado pela manhã é convidativo porque não faço nada por obrigação, nem tenho a correria dos dias que tem feira como extensão. Todos tão corridos e atarefados, mal dá tempo de saber quem sou de verdade. A pausa nessa correria toda é a terça-feira entre meio dia e 13:30, quando nos reunimos no Laboratório de Humanidades. O oásis na aridez do Departamento de Medicina Veterinária da UFRPE.
[4] RIBEIRO, Renato Janine. Apresentação do Organizador. In: HUMANIDADES um novo curso na USP. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 11-30.
[5] Usarei a convenção @ para me referir ao sexo masculino e feminino.

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