segunda-feira, 21 de março de 2011

A Literatura na Formação do Homem

Este texto foi escrito originalmente para ser apresentado durante o Seminário de Humanização em Saúde promovido pelo Laboratório de Humanidades do Departamento de Medicina Veterinária da UFRPE. O tema do evento foi "A formação humanística do médico do século XXI".
Deixo a todos e todas o convite para a leitura de um texto fundador para a compreensão da importância das humanidades na humanização.
 
Ao prof. Rafael meu cordial abraço e o agradecimento pela permissão de publicar o texto aqui.
 
Um abraço
Rozélia Bezerra.
Coordenadora LabHum-UFRPE
 
A Literatura na Formação do Homem

Por Dr. Rafael Ruiz
UNIFESP/Guarulhos
 
Talvez já tenham lido a obra de J.D. Salinger, O apanhador no campo de centeio, (se não leram, leiam ainda neste semestre), onde a personagem central, Holden Caulfield tem um sonho em que vê um monte de meninos alegres e despreocupados brincando num campo de centeio. Ele os olha desde um outeiro e percebe que os garotos não estão enxergando que no fim do campo há um abismo, por onde, sem dar-se conta, vão caindo. Dois capítulos depois, Holden vai à casa do Prof. Antolini e depois de algumas frases intranscendentes, o professor lhe diz que tem a impressão de que o Holden está caindo por um abismo cuja queda é especial.
É do tipo horrível, porque a gente cai, cai e não percebe nem sente nada. Não nos damos conta que estamos caindo, mas estamos. É o tipo de queda –diz o professor- que só acontece com aqueles que procuram alguma coisa que o seu próprio meio não pode lhes proporcionar e abandonam a busca. Abandonam-na antes mesmo de começá-la[1].
Qual é o meio em que estamos? civilização técnica. Prometeram-nos tudo: felicidade, vida justa, progresso contínuo, conhecimento e sabedoria. O que é que não nos pode dar? o conhecimento do que é o homem, o conhecimento de nós mesmos. Não sabemos mais o que é ser humano
Dostoiévski, Sonho de um homem ridículo:
p. 118:
E daí que sejamos mentirosos, maus, injustos, sabemos disso e deploramos isso, e nos afligimos por isso a nós mesmos, e nos torturamos e nos castigamos mais até, talvez, do que aquele juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não sabemos. Mas temos a ciência, e por meio dela encontraremos de novo a verdade, mas desta vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida é superior à vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria nos dará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade.
Era o que me diziam, e depois de tais palavras, cada um passava a amar mais a si mesmo do que aos outros, e nem podia ser diferente. Cada um tornou-se tão cioso da sua individualidade que não fazia outra coisa senão tentar com todas as suas forças humilhar e diminuir a dos demais. E a isso dedicava a sua vida.
Parece-me um bom retrato do ponto em que estamos: cada um cuida de si e dedica-se a humilhar e diminuir os demais, porque é a única forma de garantir o sucesso pessoal.
É a atitude do homem moderno que se vai tornando cético e cínico e indiferente a tudo e fechado sobre si mesmo. Poderíamos perguntar-nos: o que foi que aconteceu com esse nosso mundo moderno que tanto nos prometia?
Haveria muitas respostas, mas prefiro escolher uma, da mão de Shakespeare em A Tempestade, quando faz Stéfano dizer exatamente o contrário do que dizia Dostoiévski:
Cada um cuide só dos outros, sem se importar consigo mesmo, porque tudo só depende da sorte...
A “façanha” da Modernidade consistiu em não aceitar que não estamos no controle. Que há sempre algo que escapa do nosso controle e da nossa organização racional do mundo. Que, afinal, estamos nas mãos de Tyché, a deusa da sorte, que os latinos chamaram de Fortuna e os cristãos de Providência.
A ciência e a técnica dar-nos-iam o poder sobre a Natureza e o controle de nós mesmos e das coisas. Dependendo da sorte, dependíamos uns dos outros. Dependendo do saber, somos donos de nós e não dependemos de ninguém. O século XX assistiu ao desmoronar dos relacionamentos. Somos incapazes de criar relações, de formar vínculos. Temos tanto medo de sofrer, revolta-nos tanto sentir-nos vulneráveis e carentes que preferimos não ter vínculo nenhum e, quando tentamos ter, não sabemos como fazer, porque já criamos uma couraça ao nosso redor.

Susanna Tamaro, Vá aonde seu coração mandar (p. 15)
A infância e a velhice se parecem. Em ambos os casos, por motivos diferentes, somos bastante vulneráveis, ainda não somos –ou já deixamos de ser- partícipes da vida ativa, o que nos permite viver com a sensibilidade aberta, não-esquemática. É durante a adolescência que uma invisível couraça começa a formar-se ao nosso redor. Forma-se durante a adolescência, e continua endurecendo por toda a vida adulta. O processo do seu crescimento é um tanto parecido com o das pérolas: quanto maior e mais profunda a ferida, mais forte a couraçaa que se forma em volta. Mais tarde, no entanto, como uma roupa que se usou demasiado, nos pontos de maior atrito começa a desgastar-se, deixa entrever a trama, rasga-se de repente a qualquer movimento brusco. No começo, nem nos damos conta, ainda nos achamos totalmente envolvidos pela couraça, até que um dia, diante de alguma coisa boba e sem saber por quê, de repente choramos como uma criança.
De forma que, quando afirmo que entre nós duas surgiu uma divergência naturaal, é justamente isto que quero dizer. Na época em que a sua couraça começou a formar-se, a minha já estava em frangalhos. Você não suportava as minhas lágrimas, e eu, a sua improvisada dureza.
Tamaro, p. 16
Volta à mente o dia da sua partida: lembra como ambas estávamos nervosas? Você não me deixou levá-la ao aeroporto, e cada coisa que lhe pedia não esquecer provocava de você a mesma resposta: Estou indo para a América, não para o deserto. Quando da porta, com a minha voz odiosamente estridente gritei: cuide-se bem, despediu-se sem se virar dizendo: Tome conta do Buck e da rosa.
Para dizer a verdade na ora fiquei um tanto decepcionada com a sua despedida. Velha e sentimental como sou, esperava um quê de diferente e mais banal, algo como um beijo ou uma frase carinhosa. Só à noite, quando perambulava de roupão pela casa sem conseguir dormir, percebi que cuidar de Buck e da rosa queria dizer cuidar da sua parte que continua a viver ao meu lado, a sua parte feliz. E também percebi que na rispidez daquela ordem não havia insensibilidade, mas sim a tensão extrema de quem está prestes a chorar. É a tal couraça de que falei. Por enquanto, a sua lhe fica tão justa, que você quase não consegue respirar. Lembra-se do que costumava dizer-lhe nos últimos tempos? as lágrimas que não saem depositam-se no coração, com o passar do tempo incrustam-se nele e paralisam-no, tal como os depósitos calcários se incrustam e paralisam as engrenagens de uma máquina de lavar.
Voltando a Salinger: A conversa fica a cada minuto mais pesada e desesperadora, e o professor, preocupado com o futuro do aluno, acaba por dar-lhe um conselho:
você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enjoada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia[2].
É isso que a Literatura pode proporcionar. Ficar enjoados com o comportamento humano quando é execrável. Ficar revoltados com o comportamento humano quando é injusto. Ficar enjoados, ficar revoltados e confusos e assustados e, ao mesmo tempo, saber que muitos outros homens já se sentiram assim, enjoados como nós, tristes como nós, assustados como nós. Isso nos ajuda a não enlouquecer, a não desesperar e, mais, a não ficar indiferentes perante o mundo que nos rodeia
Dostoievski, Sonho, p. 92
Talvez porque na minha alma viesse crescendo uma melancolia terrível por causa de uma circunstância que já estava infinitamente acima de todo o meu ser: mais precisamente –ocorrera-me a convicção de que no mundo, em qualquer canto, tudo tanto faz(...) Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber e a sentir com todo o meu ser que diante de mim não havia nada. No começo me parecia sempre que, em compensação, tinha havido muita coisa antes, mas depois intuí que antes também não tinha havido nada, apenas parecia haver, não sei por quê. Pouco a pouco me convenci de que também não vai haver nada jamais. Então de repente parei de me zangar com as pessoas e passei a quase nem notá-las(...)sobre aquilo que eu tinha para pensar, já então cessara completamente de pensar: tudo me era indiferente. E se ao menos eu tivesse resolvido as questões; ah, não resolvi nenhuma, e quantas havia? Mas para mim tudo ficou indiferente, e as questões todas se afastaram.
Por que Literatura? porque precisamos aprender a ser humanos. E a Literatura é o melhor laboratório que temos para isso.
Qual foi o sucesso da Modernidade? a racionalização dos meios e procedimentos em favor da eficácia técnica. A aposta da Modernidade foi em favor da razão. É o eterno problema da educação. Todos na História quiseram educar. A questão é: o que foi que educou a Modernidade em nós? ciência e técnica. razão e eficiência.
            E essa aposta podemos vê-la bem ilustrada nas Viagens de Gulliver, de Swift. Os gigantes apostavam na matemática “que é inteiramente aplicada ao que pode ser útil na vida, ao progresso da agricultura e de todas as artes mecânicas (...) mas de idéias, entidades, abstrações e trascendências, nunca lhes pude enfiar na cabeça a menor concepção” (p. 154).
Encontramo-nos com uma sociedade perfeitamente cartesiana, onde a matemática e a geometria são as bases de qualquer conhecimento e onde o critério para a vida social é a utilidade e o progresso. Tudo o que não venha a contribuir pra essas metas passa a ser descartado. Acredita-se, como no país dos yahoos, que a razão cria no homemuma propensão geral a todas as virtudes” e, por isso, nos país dos yahoos se desconhece “a idéia do mal numa criatura racional”. De fato, todos os houyhnhnms tinham uma máxima, que mais tarde seria desenvolvida pelo Iluminismo: “cultivar a Razão e serem por ela inteiramente governados” (p. 308).
Diante desse homem racional, que, por ser racional, desconhece a idéia do mal, encontramo-nos com a garota Lisa, dos Irmãos Karamazov:
- queria dar-lhe a conhecer um desejo. Quero que alguém me faça sofrer, que case comigo, depois me torture, me engane e me abandone. Não quero ser feliz.
- enamorou-se da desordem?
- ah! quero a desordem. quero pôr fogo na casa. Imagino a coisa: irei às ocultas, absolutamente às ocultas, tratar de pôr fogo. Procuram apagá-lo, a casa arde. Sei e me calo. Ah! que coisa estúpida! que horror!
Fez um gesto de desgosto.
- Você vive na riqueza – disse Aliocha, em voz baixa.
- Será que vale mais viver pobremente?
- Sim.
- Não, não é verdade. Que eu seja rica e todos os outros pobres, comerei bombons, beberei creme e não darei a ninguém!....se for pobre, matarei alguém, talvez mate mesmo sendo rica. Por que me constranger?
- .... Você toma o mal pelo bem, é uma crise passageira...uma doença antiga talvez.
- Não, não quero fazer o bem, muito simplesmente quero fazer o mal, não há nenhuma doença.
- Por que fazer o mal?
- Porque não resta nada em parte alguma (p. 405-6).
A Modernidade, como as bruxas de Macbeth, estabeleceu uma indistinção entre o bem e o mal. Como dizia Ivan Karamazov, os homens queremos ser livres, mas não queremos viver com as consequências dos nossos atos: Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso. O homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de ter de discernir o bem e o mal (p. 190).
Qualquer discussão atual sobre o bem e o mal, sobre atos certos e errados passa necessariamente pela grande construção moderna da relativização desses conceitos. Há uma profunda sensação de tranquilidade de consciência quando conseguimos convencer-nos de que o que é bom para mim, pode ser mau para o outro. Contudo, torna-se difícil manter essa posição quando um Osama Bin Laden, por exemplo, afirma a sua ideia de bem e estoura dois aviões nas torres gêmeas, ou quando soldados sérvios promovem a limpeza étnica estuprando mulheres kosovares: Ivan K. declarou há cinco dias atrás que nada no mundo obrigava as pessoas a amar os seus semelhantes, que não existia nenhuma lei natural ordenando ao homem que amasse a humanidade... que o egoísmo, mesmo levado até a perversidade, devia não somente ser autorizado, mas reconhecido como a saída mais necessária, a mais razoável e quase a mais nobre... Não haverá mais nada imoral, tudo será autorizado (p. 57).
De fato, o homem é um ser complexo. Bem mais complexo do que esse homem racional que a Modernidade acabou inventando. Sempre que se fala sobre o homem se faz referência a um homem teórico, conceitual e abstrato, como dizia Miguel de Unamuno:
Porque o adjetivo humanus me é tão suspeito quanto o seu substantivo abstrato humanitas, a humanidade. Nem o humano nem a humanidade, nem o adjetivo simples, nem o adjetivo substantivado, mas o substantivo concreto: o homem. O homem de carne e osso, que nasce, sofre e morre –sobre tudo morre-, que come, e bebe, e brinca, e dorme, e pensa, e quer, o homem que se vê e a quem se ouve, o irmão, o verdadeiro irmão.
Porque há outra coisa, que também chamam de homem, e é o sujeito de não poucas divagações mais ou menos científicas. E é o bípede sem penas da lenda, o zoón politicon de Aristóteles, o contratante social de Rousseau, o homo oeconomicus dos manchesterianos, o homo sapiens de Linneo ou, se se quiser, o mamífero vertical. Um homem que não é nem daqui nem dali nem desta época nem da outra, que não tem nem sexo nem pátria, uma idéia, em fim. Isto é, um não-homem.
(...) o homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal afetivo ou sentimental. E talvez o que o diferencia mais dos outros animais seja mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes raciocinar um gato do que rir ou chorar”. (Del sentimineto trágico, p. 9-10).
Essa mesma desconfiança no excessivo racionalismo moderno é a que manifesta a personagem de Susanna Tamaro, quando escreve para a sua neta:
(...) quem confia no próprio coração é um insensato, dizia amiúde Augusto citando a Bíblia. E por que cargas d´água deveria ser insensato? Talvez porque o coração se pareça com uma câmara de combustão? Porque está escuro lá dentro, há escuridão e fogo? A mente é tão moderna –pensa-se então- como o coração é antigo. Quem liga para o coração –pensa-se então- ainda está perto do mundo animal, do descontrolado, ao passo que quem cuida da razão se aproxima das mais elevadas reflexões. E se as coisas não fossem assim, se a verdade fosse exatamente o contrário? se fosse justamente esse excesso de razão o que desnutre a vida? (p. 61).
A Literatura precisamente porque nos coloca em contato com o concreto, porque nos tira do mundo das abstrações, das retóricas e dos conceitos, precisamente porque nos coloca em contato com os homens e as mulheres reais, com seus sonhos, seus medos, suas dores, suas alegrias, suas vilezas e suas grandezas, precisamente porque não nos fala do homem ou da mulher, mas de Hamlet, Otelo, Holden, Ana, Lisa ou Ivan, permite-nos conhecê-los na sua realidade prismática, complexa e muitas vezes tanto difusa como confusa e, precisamente por isso, permite-nos conhecer-nos a nós próprios.
Volto, de novo, à Tamaro:
Cresci, pois, com a sensação de ser uma espécie de macaco a ser treinado, e não um ser humano, uma pessoa com as suas alegrias, decepções, com a sua necessidade de ser amada. Este desconforto fez logo brotar em mim uma grande solidão, uma solidão que com os anos avultou-se, uma espécie de vazio pneumático em que me movia com os gestos lentos e desengonçados de um escafandrista. A solidão também nascia das perguntas, perguntas que fazia a mim mesma e às quais não sabia responder (p. 31).
Não sabemos responder porque talvez a resposta esteja em outro lugar, e não na razão. Sei que isto pode soar a conto de crianças, mas a Literatura permite-nos questionar-nos sobre questões que pensamos definitivas e dogmáticas, como a separação do subjetivo e do objetivo, a relativização do certo e do errado, a neutralidade das opiniões e das observações ou a separação entre razão e sentimento:
observando um dia as várias antenas que vibravam no ar, pensei que o homem cada vez mais se parece com um rádio capaz de sintonizar-se apenas numa faixa de frequência.... Tenho a impressão de que o uso excessivo da mente conduz aproximadamente aos mesmos resultados: de toda a realidade que nos cerca, só conseguimos perceber uma faixa restrita. E muitas vezes esta parte está entregue à maior confusão, pois nela imperam as palavras, e as palavras, na maioria das vezes, em lugar de abrir caminho para espaços mais amplos, só nos levam de volta ao ponto de partida.... A compreensão exige silêncio....A mente é prisioneira das palavras, se houver um ritmo que lhe seja próprio, só poderá ser o ritmo desordenado do pensamento; o coração, por sua vez, respira, de todos os órgãos é o único que pulsa, e é essa pulsação que lhe permite entrar em sintonia com pulsações mais amplas” (p. 62).
Essa percepção da insuficiência da racionalidade pode ser delicada, como a da Tamaro, ou pode ser visceral como a de Dostoiévski:
Realmente, eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, de repente, em meio a toda essa sensatez futura, surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e zombateira (lembrem, digo eu, da figura que a mídia veicula com o nome de Bin Laden) e pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?Isto ainda não seria nada, mas lamentavelmente ele encontraria sem dúvida alguns adeptos: assim é o homem (Memórias do subsolo, p. 38).
Assim é o homem! O que foi que aconteceu com o homem, o que foi que aconteceu conosco nessa sociedade moderna que não nos torna mais felizes? A Literatura tem o poder de encurtar as distâncias. Essas distâncias entre “objeto” e “sujeito” que o método analítico e científico tanto se empenha em manter. A Literatura provoca-nos, envolve-nos e acaba por converter em algo muito íntimo o texto escrito. Ela sempre nos interpela e aguarda uma resposta não apenas teórica, mas pessoal.
O que foi que aconteceu comigo?, pensei. A voz alta e enevoada de Morrie levou-me de volta aos anos de universidade, quando eu pensava que os ricos são maus, que camisa e gravata são uniforme de presidiário e que a vida sem liberdade de se levantar e ir embora não é vida. Que foi que aconteceu comigo?
Aconteceram os anos 1980. Aconteceram os 1990. Morte e doença, gordura no corpo e calvície aconteceram. Barganhei montes de sonhos por cheques cada vez mais gordos e nem percebi que estava fazendo isso (A última grande lição, p. 35).
Parece-me que só assim, envolvendo-nos, quebrando a cômoda armação que a distância e a objetividade criam em torno a cada um de nós, é que podemos ser capazes de questionar-nos sobre a nossa própria sociedade e cultura:
A cultura que temos não contribui para que as pessoas se sintam felizes com elas mesmas. É preciso ser fortes para dizer que, se a cultura não serve, não interessa ficar com ela.
...Em Wimbledon, eu fazia minhas refeições mo cub~iculo de madeira onde trabalhava e nada via de estranho nisso. Num certo dia muito tumultuado, um bando de repórteres perseguiu André Agassi e sua famosa namorada, Brooke Shields, e eu fui derrubado por um repórter inglês que mal murmurou um pedido de desculpa e seguiu em frente com as suas enormes lentes penduradas no pescoço. Pensei em mais outra coisa que Morrie dissera: tanta gente anda de um lado para outro levando vidas sem sentido. Parecem semi-adormecidas, mesmo quando ocupadas em coisas que julgam importantes. Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo errado. Só podemos dar sentido à vida dedicando-nos a nossos semelhantes e à comunidade e nos empenhando na criação de alguma coisa que tenha alcance e sentido (p. 41-2).
Voltamos à Tempestade de Shakespeare. Quatro séculos se passaram e as palavras de Stéfano são similares: Cada um cuide só dos outros, sem se importar consigo mesmo, porque tudo só depende da sorte...Há algo de humano nessa recorrência. Os homens mudam, os tempos mudam, os costumes mudam, mas o clássico é permanente. E o que a Literatura clássica nos diz sobre nós mesmos não é, de forma alguma, o que a ciência e a técnica nos dizem.
Quero acabar com um trecho de um poema de T. S. Elliot. Um poema de 1925. Os homens ocos. Penso que a falta de Literatura poderá levar-nos mais dias, menos dias, a esse lugar:
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.
.....
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

Disse que ia acabar, mas não, quero acabar com Holden, de novo. A Literatura ensina-nos algo que nenhuma outra disciplina nos ensina, e que o Prof. Antolini dá como último conselho a Holden: “Você começará a conhecer as suas medidas exatas, e vestirá a sua mente de acordo com elas[3]. É disso que se trata: encontrar as nossas medidas. Cada um as suas. Cada um de nós, que entra na vida cheio de sonho, de paixão e de entusiasmo não pode ser engessado pelo sistema técnico, recional e instrumental, tem de encontrar o espaço de liberdade necessário para encontrar as próprias medidas. Isso só é possível no encontro com as Artes e, especificamente, com a Literatura.


[1] SALINGER, J.D., O Apanhador no campo de centeio, 16 ª edição, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1951, p.182.
[2] Idem, p. 184.
[3] SALINGER, J.D., O Apanhador no campo de centeio, 16 ª edição, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1951, p. 185.

Um comentário:

  1. Gosto MUITO desse texto.

    A verdade é que aprendemos a nos proteger assim, criando barreiras que nos isolem dos outros. Parece que é sempre "cada um por si e Deus contra todos".
    Falta quem dê a mão, falta quem pare para pensar, falta quem tenha coragem de sentir.

    Ah, sabe o que falta também? Falta parar de ouvir "pra que isso???" quando eu pego meu livro na mochila.

    Queria que fossemos menos ocos.

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